. Uma história sobre o inevitável – Doutores da Alegria

Para melhor visualização do site, utilizar navegador Google Chrome.

Blog

Uma história sobre o inevitável

25 de setembro de 2015
Tempo de leitura: 2 minutos

Doutores da Alegria

Comentario 23
Compartilhar 0

As palavras nesse texto não são novidade para os palhaços, meus companheiros de jornada.

Quem conta a história sou eu, Enne Marx. Integro o elenco dos Doutores da Alegria e percorro hospitais do Recife há muito, muito tempo. Escrevo aqui de cara limpa, sem a máscara do palhaço, sobre algo que me emocionou.

o inevitavel

A L. é uma menina de mais ou menos seis anos, paciente há alguns meses no Imip. Em um dos nossos encontros, eu e Baju percebemos que ela estava desestimulada. Deixei meu boneco, o “Mané Gostoso”, com ela. Na outra visita L. tinha tido alta e foi para sua casa, no interior do Recife.

Em seu retorno ao hospital, nos encontramos e perguntei pelo brinquedo.
– Ele não quis vir para o hospital, disse ela.

No final de agosto, eu e Svenza, outra besteirologista, entramos em seu quarto e demos de cara com mãe, pai e tia. Todos muito tristes. A menina estava com o respirador, gemendo, e seu olhar quase sem vida. Nosso primeiro intuito foi tocar uma música, uma que ela gosta muito, e cantamos baixinho. Mas a vontade de ficar era grande e cantamos mais uma.

Segurei a sua mãozinha pequena e acariciei bastante. Tínhamos que ir pra atender às outras crianças da UTI. Quando saí de perto da cama, sua mãe pegou a mãozinha que eu havia soltado. Achei esse gesto muito forte e tocante, era como se a palhaça tivesse mostrado a humanidade por trás da máscara.

No corredor encontramos a enfermeira que nos confirmou o que estava claro:
– Ela está indo embora.

Nos olhamos e respiramos fundo por um momento. Criamos coragem pra seguir. 

o inevitavel

Depois que atendemos os outros quartos, falei pra Svenza que meu coração estava pedindo pra voltar lá. Dizem que devemos sempre seguir a nossa intuição e foi o que fiz, sem medo. Entramos no quarto.

– Nós voltamos porque queríamos dar um abraço em vocês.

Abraçamos cada um. O choro foi maior, como se eles estivessem tendo uma catarse libertadora de emoções. Olhei pra Svenza e, mesmo que evitemos fazer isso, ela também chorava. Lembrei do quão paradoxo é um palhaço se por a chorar e do quanto a imagem pode ser forte, afinal por trás da máscara existe um ser humano.

Mas aquele momento foi único, o tempo pareceu parar. A menina continuava respirando muito mal, mas parara de gemer por uns instantes. Percebíamos que seu olhar já não estava tão claro pra ela, ele ia e voltava, os olhos fechavam e abriam. Toquei novamente a sua mão.

Da minha boca saíam palavras que nunca imaginei dizer estando com o nariz de palhaço, mas saíram livres de qualquer julgamento. Trocamos palavras repletas de bons desejos e agradecimentos pela vida.

Ficamos todos muito emocionados com a sua bravura. Uma pequena criaturinha que estava dizendo adeus. Em um minuto, como num filme, lembrei de suas risadas, de sua marotagem e permaneci ali aprendendo com a morte

Finalmente saímos e deixamos L. e sua família de cara com o inevitável. 

Saímos embargadas, respirando fundo. Precisamos de um tempo para nos recompor e trazer alegria para os nossos olhos e corpo, pois ainda tínhamos dois andares a atender.

Na próxima visita soubemos que ela tinha partido naquele mesmo dia.

Com amor,
Enne Marx.

0
0
votes
Article Rating


Categorias


Lá do arquivo

Doutores da Alegria


Postado em:

Tags

aprendizado, choro, emoção, morte, palhaço, paradoxo

Receber notificação
Notificação de
guest
23 Comentários
Mais antigos
Mais recentes Mais votados
Inline Feedbacks
View all comments
Patricia
Patricia
8 a

Amo e respeito muito o trabalho de vocês, continuem sempre!

Sandra Amorim
Sandra Amorim
8 a

É muito lindo o que vcs fazem, Deus abençoe sempre, sempre vcs

Bruna
Bruna
8 a

Nossa…aqui chorando só de ler! estudo para atuar na área da saúde, mas também preciso trabalhar meu emocional porque com certeza, passaria os plantões aos prantos.

Emmely
Emmely
8 a

Chorando e lendo, pois me lembro dos últimos momentos da Gabi e quanto ela amava os doutores da alegria. Um dia chegou a chorar pois eles já haviam ido e tive que descer as escadas corendo e pedir para voltarem e ficar só mais um pouquinho.

Renata
Renata
8 a

É realmente emocionante histórias assim, como as crianças tem a nos ensinar, e incrivelmente, como a morte tem a nos ensinar. Fiz parte durante muitos anos de um grupo em Franca/SP, Andarilhos da Luz, que faz um trabalho com a mesma essência da de vcs. E também tive uma experiência assim. E lendo seu relato, foi impossível não lembrar daquela linda menininha que tanto me ensinou e me marcou. Obrigada!

Existem 23 Comentários.